terça-feira, 4 de setembro de 2018

O que a ciência perde com a tragédia no Museu Nacional



 A instituição bicentenária contava com coleções de diferentes domínios do conhecimento, como arqueologia, antropologia, zoologia, botânica, geologia e paleontologia. Estudiosos ouvidos pela reportagem concordam que os danos são irreparáveis para o conhecimento da história e da cultura não apenas do Brasil, mas da humanidade.
A professora do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia da UFRGS Marina Bento Soares viajou ao Rio para acompanhar o caso.
— O clima está muito triste — relata. — Os funcionários, professores, técnicos, enfim, todos que chegam aqui estão chorando, abraçando-se desolados. A gente olha para a frente do Museu e vê uma carcaça. São paredes ocas, nada mais.
Marina, que é mulher do diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, nota que o prédio necessitava de reforma há muito tempo, mas apenas recentemente havia obtido investimento de R$ 21,7 milhões do BNDES. A verba, lembra a professora, seria direcionada justamente para reforma na parte elétrica, de manutenção e prevenção a incêndio. Para ela, a tragédia foi reflexo de décadas de descaso de diferentes governos. Alimenta, no entanto, a expectativa de que algumas coleções tenham permanecido intactas:
— Tem-se a esperança de que alguns setores não tenham sido tão atingidos, como algumas coleções que estavam naqueles armários de aço, que são bem resistentes. Mas ninguém sabe ainda. Não se tem a dimensão. Vai começar um trabalho com o Corpo de Bombeiros de entrar lá e mexer nos escombros para tentar resgatar o que sobrou.
Com a repercussão, o Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus (ICOM) recebeu manifestações de solidariedade de diferentes partes do mundo. A presidente do ICOM Brasil, Renata Motta, observa que uma pauta como a da preservação da memória e do patrimônio pode parecer “distante” diante das urgências da sociedade brasileira nesse momento de crise política e institucional, mas que esta tragédia pode ajudar a entender melhor as escolhas que estão sendo feitas:
— O montante para a preservação dos nossos acervos é proporcionalmente menor do que investimentos em outras áreas. Portanto, se for planejado, podemos investir de forma efetiva para que novas tragédias não ocorram.
Renata acrescenta que o Museu Nacional não apenas tem 200 anos de história como exibe características “muito específicas”, por abrigar acervos de diferentes naturezas:
— De fato, é uma perda que ainda não conseguimos mensurar.
O doutor em História da Arte José Francisco Alves, membro do ICOM e ex-curador-chefe do Margs, conta que encontrou o Museu em situação precária já em 2009, quando o visitou:
— Lembro de um sarcófago egípcio de pedra, todo pintado, que estava pegando sol. As janelas estavam abertas, e o ar do Rio entrava na sala. Fiquei horrorizado, é algo impensável, sem o mínimo de climatização na sala.
Alves define o acervo do Museu como “eclético”, envolvendo ciência, cultura e arte:
— É uma catástrofe cultural, mas também arquitetônica, pois não podemos esquecer a importância do prédio em si. Se for reconstruído, não será uma restauração, mas quase uma reciclagem.
Curador da exposição Etnos — Faces da Diversidade, com máscaras de diferentes culturas e regiões, em cartaz no Santander Cultural, em Porto Alegre, Marcello Dantas lembra que algumas coleções jamais serão recuperadas:
— Múmias egípcias e máscaras africanas até temos em outras partes do mundo, mas as coleções de etnologia e arqueologia do Museu Nacional eram únicas. Aquele acervo pré-colombiano, indígena brasileiro e arqueológico das Américas não existe em lugar algum. E isso não tem como repor.
Para Dantas, o vínculo com a matriz brasileira perdido na tragédia é “gigante”:
— Não estou falando de 500 anos, mas de 5 mil anos de histórias profundas sobre o que é viver dentro desse contexto que é o Brasil. As pesquisas feitas ali dentro eram excepcionais, de primeira qualidade e de referência mundial. É uma perda absurda para a humanidade.

Fonte: GauchaZH

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