A meia hora de carro da cidade histórica de Mariana, em Minas Gerais, as árvores subitamente dão lugar ao que parece uma planície de sal deserta. É um vale de mais de três quilômetros de largura, cheio de detritos de mineração. Em 5 de novembro de 2015, uma barragem que segurava todo esse mar de lama desmoronou, provocando uma enxurrada que matou 19 pessoas, destruiu vilarejos e percorreu quase 650 quilômetros até o Oceano Atlântico, onde deixou uma mancha marrom avermelhada que podia ser vista do espaço. Com a altura de um edifício de 30 andares e contendo um volume suficiente para encher 47 Maracanãs, a barragem foi a maior estrutura do tipo que já se rompeu até hoje.
Não vai ser a última. Do Chile até a Austrália e os Estados Unidos, a busca por economias de escala vem levando as mineradoras a cavar minas cada vez maiores e mais profundas, criando um volume recorde de resíduos. Para armazenar todo esse detrito, essas empresas construíram algumas das estruturas mais colossais que o homem já ergueu no planeta. Conhecidas como barragens de contenção de rejeitos, esses diques de terra retêm vastos reservatórios de lama, pequenas partículas de rocha, e água — ou seja, o que sobra depois que os metais são separados do minério.
Na teoria, as barragens de rejeitos deveriam durar para sempre. Na prática, elas falham com tanta frequência que os engenheiros do próprio setor estão soando o alarme. Um ano e três meses antes do acidente de Mariana, uma barragem de rejeitos de uma mina do Canadá, totalmente em conformidade com a regulação local, desabou e causou o maior acidente do tipo na história do país. Especialistas estimam que entre um e quatro rompimentos ocorram todo ano em barragens de rejeitos no mundo inteiro, uma frequência quase dez vezes maior que em barragens de água.
As barragens mais altas, nos Andes peruanos, já têm o tamanho da gigantesca represa de Hoover, nos Estados Unidos, e têm autorizações para crescer ainda mais.
“Nossas barragens e depósitos estão entre as estruturas de maior risco da Terra”, diz Andrew Robertson, um consultor de Vancouver que já projetou várias barragens enormes para mineradoras. Ele observa que a produção de rejeitos das maiores minas se multiplica por dez a cada trinta e poucos anos.
Acidentes em países governados por regimes autocráticos geralmente não são divulgados, particularmente na China, dizem especialistas. A regulação e a fiscalização variam bastante conforme a jurisdição e frequentemente as mineradoras têm que fiscalizar a si mesmas.
“Ao redor do mundo, é uma miscelânea”, diz Harvey McLeod, engenheiro canadense que preside o comitê de barragens de rejeitos da Comissão Internacional de Grandes Barragens, ou Icold, na sigla em inglês. “Essas estruturas são tão complexas que é quase impossível escrever uma regulação pré-formulada.”
A barragem do Fundão, em Minas, pertencia à Samarco Mineração SA, uma joint venture entre as duas maiores mineradoras do mundo: a anglo-australiana BHP Billiton Ltd. e a Vale SA.
A Samarco, que está sob investigação criminal no Brasil por causa do desastre, diz que a barragem do Fundão cumpria todas as exigências legais e regulatórias e sua estrutura não mostrava sinais de estar comprometida antes do rompimento, uma versão com a qual consultores da empresa não concordam. A Vale e a BHP Billiton afirmaram que a barragem era responsabilidade da Samarco, não delas. Todas as três companhias vêm colaborando com as iniciativas de socorro às vítimas e prometeram reconstruir as casas destruídas.
No início de março, as empresas envolvidas concordaram em gastar um mínimo de R$ 9,46 bilhões na limpeza da área, sendo a maior parte destinada à criação de uma fundação independente para gerenciar os esforços de recuperação.
O desastre da Samarco reverberou na indústria da mineração. Na assembleia anual dos acionistas da BHP Billiton, em novembro, o diretor-presidente da empresa, Andrew Mackenzie, pareceu conter as lágrimas ao descrever a cena “desoladora” que ele havia testemunhado no Brasil.
O Conselho Internacional de Mineração e Metais — ou ICMM, na sigla em inglês —, que inclui a maioria das grandes mineradoras do mundo, afirmou em dezembro que “convocaria uma revisão global dos padrões de barragens de rejeitos e controles críticos”.
Ao contrário das represas de hidrelétricas, que armazenam água para gerar energia, as barragens de rejeitos não são projetadas e construídas de uma vez. Elas são erguidas gradualmente pelas mineradoras, à medida que os depósitos minerais vão sendo explorados. Enquanto muitas represas podem ser drenadas e removidas ao fim de sua vida útil, as mineradoras projetam suas barragens com um objetivo diferente em mente: deixá-las para trás quando o minério acabar.
O projeto mais comum das barragens de rejeito, conhecido como método de montante (“upstream”, em inglês), consiste em deixar os rejeitos mais próximos à barragem secar. Esses rejeitos secos são, então, usados como fundação para novos níveis, ou alteamentos, erguidos por meio da acumulação de terra ou rejeitos em diques sucessivos. Como exige a menor utilização possível de escavadeiras, o método de montante, que foi o empregado pela Samarco, é a forma mais barata de construir uma barragem de rejeitos.
Muitos engenheiros dizem que as barragens construídas pelo método de montante são as mais propensas a falhar. O Chile, onde terremotos são comuns, proibiu esse tipo de projeto.
Um estudo realizado em 2009 por engenheiros experientes que analisaram dados de acidentes num período de 42 anos concluiu que a frequência com que os rejeitos vazam aumenta quando os preços das commodities caem, como “uma ressaca depois de uma boa festa”. Isso poderia ser um reflexo das pressões para cortar custos, “uma vez que as minas construídas sob a premissa de alta nos preços das commodities são forçadas a operar sob a realidade de preços mais baixos”, diz o estudo dos engenheiros Todd Martin e Michael Davies.
Martin trabalha hoje para a mineradora britânica Anglo AmericanPLC e Davies está na canadense Teck Resources Ltd. As empresas não disponibilizaram os engenheiros para comentários.
Quando os acidentes acontecem, eles não provocam apenas inundações, mas também liberam uma lama pesada e arenosa que destrói tudo pelo caminho. Em 1985, um vazamento de apenas 200 mil metros cúbicos arrasou um vilarejo nos Alpes italianos e matou 268 pessoas.
Em comparação, a barragem da Samarco continha 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Membros das equipes de socorro observaram, na ocasião do acidente, que o número de mortos provavelmente teria sido maior se a barragem não tivesse se rompido durante o dia, quando muitos moradores do povoado mais próximo, Bento Rodrigues (um distrito de Mariana), estavam ou trabalhando ou pelo menos acordados.
“Se eu tivesse ido dois minutos mais devagar, estaria morta”, diz Maria Irene de Deus, moradora de longa data da comunidade que fugiu a pé depois do colapso da barragem.
Num estudo de 2002, Davies, o engenheiro, disse que a frequência de falhas em barragens de rejeitos era aproximadamente dez vezes a de falhas em represas de água. Naquela época, ele estimou que havia “mais ou menos 3.500 barragens de rejeitos no mundo todo”.
Ninguém sabe ao certo. O Icold não inclui as estruturas no seu Registro Mundial de Barragens, que tem 58 mil entradas, devido ao receio interno de que a alta incidência de falhas manche a reputação de barragens de todos os tipos, diz Emmanuel Grenier, porta-voz da entidade.
O The Wall Street Journal perguntou às cinco maiores mineradoras de capital aberto do mundo quantas barragens de rejeitos elas operavam mundialmente, qual a mais alta e qual armazena o maior volume. Somente uma, a Anglo American, respondeu a todas as perguntas, afirmando que tem 109 estruturas de armazenamento no mundo todo, 38 delas inativas. A mais alta é a Perez Caldera No. 2, com 110 metros, e a de maior capacidade é a Las Tortolas, com 448 milhões de toneladas. Ambas ficam no Chile.
A Vale respondeu apenas à primeira questão, observando que possui 13 barragens de rejeitos em suas minas de minério de ferro no Brasil. A Rio Tinto PLC forneceu uma resposta parcial à primeira pergunta, afirmando que tem 35 barragens em operação “e muitas outras fechadas” ou desativadas. A BHP Billiton identificou sua maior e mais volumosa barragem, a Escondida, no Chile, mas não informou quantas barragens possui. A Glenclore PLC não quis responder a nenhuma pergunta.
A fata de informações detalhadas levou David Chambers, um geofísico do Centro para a Ciência na Participação Pública, uma organização sem fins lucrativos que se concentra em mineração e é sediada no Estado americano de Montana, e Lindsay Newland Bowker, gestora de riscos ambientais no Estado do Maine, a compilar um banco de dados de todos os acidentes em barragens de rejeitos que puderam identificar entre 1915 e 2010. O total: 226.
Baseado em suas descobertas, eles projetaram que 11 falhas “muito sérias” — definidas como as que liberam pelo menos 1 milhão de metros cúbicos de rejeitos, alcançam mais de 20 quilômetros ou causam múltiplas mortes — em barragens vão ocorrer entre 2011 e 2020. Até agora, já aconteceram cinco.
“É uma dessas coisas sobre que você gostaria de estar errado”, diz Chambers, que defende a criação de instalações mais seguras para armazenar rejeitos.
Barragens de rejeitos perigosas não são um problema exclusivo do mundo em desenvolvimento. O Canadá, que abriga um dos setores de mineração mais avançados do mundo, sofreu o maior acidente com rejeitos de sua história em 2014, quando a barragem Mount Polley, da Imperial Metals Corp., desmoronou. Cerca de 8 milhões de metros cúbicos de resíduos de ouro e cobre foram despejados em dois lagos glaciais da província de British Columbia, cortando temporariamente o suprimento de água potável.
Um riacho onde salmões depositavam os seus ovos está atualmente sendo usado como “fosso” para drenar a água da mina enquanto a Imperial Metals reconstrói sua barragem, diz Richard Holmes, um biólogo do setor pesqueiro que mora nas proximidades. Ele diz que a maior parte do rejeito ainda está no fundo dos lagos.
A mineradora não quis comentar.
Em agosto, as preocupações com rejeitos de minas fechadas ficaram em evidência nos EUA. Uma equipe de limpeza da Agência de Proteção Ambiental do país, a EPA, provocou acidentalmente um vazamento numa velha mina de ouro no Colorado que derramou arsênico, cádmio e chumbo num rio de montanha, levando governadores de três Estados a declarar estado de emergência. A mina estava fechada desde 1922.
Cientistas dizem que a causa mais comum dos acidentes com rejeitos é o excesso de água, que liquefaz a terra que segura as barragens. Um painel que analisou o acidente de Mount Polley recomendou que mineradoras fizessem uso da tecnologia para remover a água dos rejeitos antes de armazená-lo.
Outra maneira de tornar as barragens de rejeitos mais seguras é expandir o reservatório também lateralmente, em vez de usar o método de montante que só eleva sua altura a partir de rejeitos secos. Chamado de método de jusante, esse tipo de projeto resulta numa estrutura mais forte e mais semelhante a uma barragem de água.
Mas ambas as técnicas — a remoção de água e o método de jusante — são mais caras do que o projeto de montante.
“O que precisamos fazer para interromper essa alta frequência de falhas em barragens de rejeitos é colocar a segurança em primeiro lugar”, diz Chambers, do Centro para a Ciência na Participação Pública. “E, neste momento, as empresas não fazem isso francamente. Elas colocam a viabilidade econômica em primeiro lugar.”
Grandes mineradoras negam que seja assim. Os melhores engenheiros dizem que não projetariam uma barragem de rejeitos se limitações no orçamento pudessem comprometer sua segurança. Alguns, como McLeod, do Icold, dizem que simplesmente evitam projetar barragens de rejeito com o método de montante.
“Acreditamos que essas instalações podem ser seguras com a aplicação de um projeto adequado e padrões de gestão”, diz Tom Butler, presidente do ICMM. “Como meus membros são companhias globais, elas se preocupam muito com a sua reputação. Elas têm um incentivo muito grande para fazer a coisa certa.”
No caso do acidente em Mariana, as autoridades brasileiras reconhecem que a fiscalização regulatória não é rigorosa. Promotores dizem que, antes do desastre, o Departamento Nacional de Produção Mineral tinha apenas dois especialistas em segurança de barragens responsáveis pelo monitoramento de mais de 300 estruturas de armazenagem de rejeitos em Minas Gerais. O órgão também foi afetado por cortes de orçamento em meio à crise fiscal que o país atravessa.
“Não temos um orçamento ou recursos humanos”, diz Paulo Santana, porta-voz do DNPM.
A Samarco, segundo a maioria dos relatos, estava ativamente envolvida nas comunidades locais antes do acidente e era vista como uma empresa responsável. No início de 2015, ela concordou em gastar R$ 500 mil num novo sistema de abastecimento de água para Bento Rodrigues. Executivos da empresa costumavam participar das reuniões da câmara municipal.
“A Samarco sempre foi às reuniões em Bento Rodrigues dizendo ‘não se preocupem, durmam tranquilos”, diz Gilberto Pereira da Silva, de 33 anos, que tem dois filhos e ficou desabrigado, juntamente com a maioria dos outros moradores do distrito, quando a barragem estourou. “A gente vivia com medo, mas confiava na Samarco.”
Fonte: The Wall Street Journal
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