quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Samarco ganha poder para decidir como será indenização em MG



A minuta do acordo extrajudicial entre Samarco, Vale e BHP Billiton, os Ministérios Públicos Federal e Estadual e entidades governamentais sobre o desastre de Mariana, obtida com exclusividade pela Agência Pública, revela que as empresas terão o poder de decidir sobre quem será indenizado e sobre quanto cada pessoa ou família vai receber.
Se assinado por todos os envolvidos, o acordo encerra a ação civil pública que corre na 12ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais.
Será criada uma Fundação, comandada pelas mineradoras, para analisar cada um dos casos.
O andamento do trabalho será supervisionado pelo Comitê Interfederativo, entidade que reunirá representantes dos governos federal, estadual e municipal, mas não terá nenhum integrante de movimentos sociais que defendem as vítimas do rompimento da barragem do Fundão, o maior desastre ambiental da história do país.
Atualizada em 11 de fevereiro, a minuta do documento estipula como os responsáveis deverão agir para reparar e compensar os danos socioambientais e socioeconômicos.
Órgãos técnicos federais e estaduais estimaram que o custo deve ultrapassar R$ 20 bilhões. O texto, que tem 98 páginas, pode ser lido abaixo, na íntegra.
Apesar de haver uma série de pontos polêmicos e de não ter envolvido representantes dos atingidos na elaboração dos termos, o governo pretende fechar o acordo extrajudicial até sexta-feira (26). A data já foi inserida inclusive no final do texto.
De acordo com a cláusula 34ª do documento, a Fundação comandada por Samarco, Vale e BHP Billiton vai criar uma Câmara de Negociação para acertar o valor das indenizações com cada um dos atingidos.
Para isso, contará com negociadores com experiência na área jurídica e levará em conta informações sobre os interessados em reparações e provas colhidas.
Aqueles que não puderem pagar por um advogado vão ter a assistência jurídica gratuita patrocinada pela própria Fundação.
Ou seja, terão de aceitar a ajuda oferecida pelas empresas, que vão pagar as indenizações, para negociar ou contestar as próprias mineradoras. Quem não concordar com os termos oferecidos deverá entrar na Justiça.
O promotor de Justiça da Comarca de Mariana, Guilherme de Sá Meneghin, afirma que não participou de nenhuma das reuniões que resultaram no acordo. “Nunca houve qualquer tipo de diálogo comigo e também nunca houve qualquer tipo de diálogo com os atingidos”, diz.
“Nada disso que está aí contempla o que de fato as pessoas precisam para ter o seu reassentamento efetivado. Eles não têm condição de saber como os atingidos querem a comunidade, eles não me consultaram e não consultaram os atingidos. Eles não conhecem Bento Rodrigues.”
A cláusula 10ª da minuta estabelece as modalidades de reparação socioeconômica. Para o promotor, o texto não tem validade.
“Essa cláusula, ao não contemplar a participação das vítimas, não pode ser viabilizada. Ela viola não só a responsabilidade civil da empresa, que tem que ser de acordo com o dano causado, como também viola diversos tratados internacionais da área de direitos humanos”, afirma Meneghin.
“A maioria das casas de Bento Rodrigues eram casas coloniais, construídas no século 18. Qualquer projeto que não leve em consideração características como essas não tem condição de ser viabilizado. Essa é a nossa contestação.”
O promotor contesta ainda o modo como a Fundação vai decidir sobre as indenizações, usando a Câmara de Negociação para tratar individualmente cada caso.
“A indenização não pode ser levada à cabo por essa Fundação. Ela tem que ser feita na Câmara de Indenização aqui na Comarca com a participação do governo dentro do processo da ação civil pública em que já fixamos a primeira parcela da indenização. Cada comunidade tem um perfil muito diferente”, afirma.
De acordo com Meneghin, também não faz sentido que a Fundação forneça advogados para quem não puder arcar com isso. “Uma empresa não pode pagar advogado para uma pessoa que vai entrar com processo contra ela. O estatuto da OAB proíbe essa atividade. Isso é ilegal.”
Sem garantias

A Fundação também deverá cadastrar todos os atingidos, de acordo com a cláusula 8ª. Isso, no entanto, não garante o recebimento das indenizações, uma vez que cada caso será decidido após acordo na Câmara de Negociação.
Essas negociações, segundo a minuta, poderão ser acompanhadas pelo poder público. Logo, não existe a obrigação de que isso seja fiscalizado de perto pelo governo.
O trabalho de cadastramento de todas as pessoas e empresas atingidas pelo desastre deverá ser concluído em no máximo seis meses após a assinatura do documento e será verificado pelo Comitê Interfederativo.

As atribuições da Fundação são definidas na cláusula 4ª da minuta do acordo.
A entidade, instituída e patrocinada pelas responsáveis pelo rompimento da barragem, cuidará da execução de todos os programas e medidas necessários para a reparação, mitigação, compensação e indenização pelos danos socioambientais e socioeconômicos causados pelo desastre de Mariana.
Os encargos financeiros serão cobrados primeiro da Samarco. Somente se a empresa não tiver como cumprir os aportes de recursos exigidos por essas iniciativas é que a Vale e a BHP Billiton deverão fornecer os valores necessários.
Para Danilo Chammas, advogado da organização Justiça nos Trilhos, a proposta defendida pela minuta é perniciosa por confundir ações voluntárias de responsabilidade social corporativa com medidas para reparação de danos – que seriam obrigações devidas pelas empresas por conta das violações de direitos.
“As empresas têm medo de uma condenação judicial. O acordo é bom para elas e ruim para as vítimas, sejam elas as pessoas ou o meio ambiente”, diz.
“Mesmo que esse acordo preveja multas vultosas por descumprimento de suas cláusulas, é bastante provável que estas não sejam suficientes para incentivar as empresas a cumprirem com as obrigações assumidas. Atuo em processos em que a Vale tem descumprido sem o menor pudor decisões judiciais que também impõem multas por descumprimento.”
Outro ponto polêmico do documento prevê que a Fundação contrate uma empresa para identificar as áreas que sofreram impacto social, cultural e econômico com o rompimento da barragem.
Esse estudo estabelecerá a relação entre causa e consequência, isto é, a cadeia causal que vai relacionar o desastre aos danos causados, permitindo posteriormente a definição das compensações.
O problema é que as mineradoras terão influência direta nesse trabalho, que depois precisará ser validado pelo poder público por meio do Comitê Interfederativo.
Todas as decisões da Fundação serão analisadas e aprovadas por um Conselho de Administração. Dos sete integrantes do órgão, seis serão indicados pelas mineradoras: dois pela Samarco, dois pela Vale e dois pela BHP Billiton.
Apenas um dos membros será indicado pelo Comitê Interfederativo, formado pelo poder público. Todos os integrante do Conselho, no entanto, devem vir da iniciativa privada e ter experiência em gestão de grandes projetos.
Não há vagas, portanto, para qualquer representante dos atingidos pelo desastre.
Haverá também um Conselho Consultivo, com 14 membros, que poderá ser ouvido sobre os projetos e planos da Fundação. Mas nele também não há espaço para as vítimas, para as entidades que as representam ou para movimentos sociais.
Haverá sete representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, dois da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, cinco especialistas de instituições de ensino e pesquisa ou com notório conhecimento – um deles será indicado pelo Ministério Público Federal, um pelos Ministérios Públicos Estaduais de Minas Gerais e do Espírito Santo, dois pelo Conselho de Administração da Fundação e um pelo Comitê Interfederativo.
Em nenhum ponto do documento é criado qualquer mecanismo institucionalizado para garantir a participação efetiva dos atingidos nas decisões da Fundação.
Eles ou as entidades que os representam poderão apenas ser ouvidos pelo Conselho Consultivo, segundo parágrafo único da cláusula 247ª, em assembleias sem direito a voto.
Segundo a minuta do acordo extrajudicial, a Fundação criará uma Ouvidoria para manter o diálogo com a população atingida.
O documento, no entanto, deixa a cargo da entidade comandada pelas mineradoras a indicação do ouvidor que deverá resolver eventuais disputas que podem surgir ou apurar denúncias.
Os atos, projetos e programas da Fundação serão fiscalizados pelo Comitê Interfederativo, que reúne membros do governo e do Ministério Público.
Entre os integrantes, porém, não está nenhum representante da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que poderia defender os direitos dos atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão.
As ações desse órgão também são sempre reativas, de acordo com a minuta, o que pode tornar os procedimentos burocráticos e também dificultar o acompanhamento.
Indígenas atingidos
Na minuta do acordo está previsto um programa de proteção e melhoria da qualidade de vida dos indígenas. As populações contempladas são os Krenak, os Tupiniquim e os Guarani da região da foz do rio Doce.
Para as ações, o acordo prevê mecanismos de consulta e participação dos povos em todas as fases do programa, mas não estabelece diretrizes para esses mecanismos.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai) deverão supervisionar e participar das ações mas não têm funções de coordenação.
Na cláusula 44ª são estipuladas as ações de responsabilidade da Fundação em relação aos indígenas.
Entre elas está a manutenção das medidas de apoio emergencial, estipuladas em um acordo feito em novembro de 2015 com a Vale, e o monitoramento de situações como o abastecimento e qualidade da água e apoio financeiro mensal às famílias.
Também consta a atualização das necessidades dos indígenas em virtude de diálogo com essa população.
Para que o programa tome forma, porém, a Fundação deve contratar uma consultoria independente, que irá elaborar um estudo para apontar os impactos socioambientais e socioeconômicos sobre os indígenas.
A partir daí, será feito um Plano de Ação Permanente, que deve ser pactuado com os indígenas.
O prazo para que o Plano de Ação Permanente entre em operação é de dois anos a partir da assinatura do acordo e ele deverá ser mantido por, no mínimo, dez anos.
“Essa definição do acordo já deveria estar considerando a opinião e a demanda dos índios”, comenta Adriana Ramos, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA).
“O governo está, em nome da sociedade, estabelecendo uma forma de lidar com os impactos sem consultar a sociedade pra saber se essa forma é a forma que melhor atende.”
Ela aponta que as ações previstas no acordo também deveriam ter sido alvo de consulta dos indígenas.
“Você vai criar uma fundação das empresas pra trabalhar em área indígena e quem deveria definir quem vai gerir os recursos pra aplicar nas ações deveriam ser os próprios índios. Em que organização que eles confiam?”
Ailton Krenak, liderança indígena do Vale do Rio Doce, esclarece que são feitas reuniões periódicas com as empresas e com o Ministério Público Federal, em virtude das medidas de emergência adotadas.
Ao ser questionado se os termos do acordo foram discutidos com a população Krenak, Ailton afirma que não.
A Agência Pública entrou em contato com os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, os ministérios de Minas e Energia e Meio Ambiente – que nos encaminharam, respectivamente, para o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e para o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – e a Advocacia-Geral da União (AGU).
O DNPM informou que o assunto não é de sua alçada e, por isso, não o comentará. Os demais órgãos não se posicionaram até o fechamento desta reportagem.

Fonte: Exame

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